segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

MEMÓRIA - 2
*
Entrelinhas duma Memória
*
O Unimog 4X4 subia com alguma dificuldade a íngreme picada que nos levava montanha acima. Íamos divertidos por via da ginástica que fazíamos para nos mantermos em cima da viatura, face aos constantes “pinotes” dados pelo todo o terreno, mas ao mesmo tempo intrigados. Sabíamos que haviam três pelotões dispersos pela montanha: Morteiros, Artilharia, e Antiaérea, mas não eram visíveis quaisquer instalações.
Desfizeram-se as dúvidas quando o Unimog parou no último monte: as instalações eram todas debaixo de terra! E a partir desse momento também nós iríamos vestir a pele de homens toupeira.
Fomos instalados num buraco que já fora cantina mas que agora funcionava como caserna.
Lá estavam as três camas de ferro com enxerga e almofada, mas roupa de cama não havia. Ainda estávamos a rir com a situação quando fomos abordados por um furriel e dois soldados que tinham subido porque tinha constado em baixo que um de nós era grande jogador de bola e precisavam de reforçar a equipa que disputava um campeonato entre companhias. Miraram, remiraram e escolheram-me a mim – deves ser tu, tens pinta de jogador! Escusado será dizer que a nossa boa disposição aumentou, pois nenhum de nós tinha o menor jeito para tal.
Por fim lá se foram embora desiludidos e desconfiados de que um de nós lhes havia escondido as suas reais capacidades futebolísticas.
Logo que o dia chegou ao fim apercebemo-nos de um “inimigo” de peso, as legiões de mosquitos que nos iriam transformar as noites em pesadelo.

*


*
Refeitório não tínhamos, banho também não, sanitário era no meio do capim mas tínhamos instruções rigorosas para que sempre que usássemos essas “instalações” mantivéssemos conversa constante com os sentinelas pois, por vezes, eles passavam pelas brasas e podiam muito bem confundir-nos com o inimigo…
Dado o facto de sermos Operadores de Informação das Transmissões o nosso posto de trabalho situava-se em baixo bem junto ao rio onde era impensável tomar banho, porque a água tinha um aspecto barrento mas também porque a sabíamos infestada de jacarés.
Valia-nos nesse aspecto a piscina que era o ex-líbris de Nóqui. Semi-abandonada, terá sido em tempos usada pelos habitantes dos dois lados da fronteira. Agora era de uso exclusivo dos militares portugueses e de um ou outro cidadão belga mais retardatário em abandonar Matádi e fugir às tropas de Mobutu.

*

*
Mas outra dificuldade chegou: o motor que permitia o abastecimento de água potável a Nóqui deixou de trabalhar, terá sido danificado pelos guerrilheiros que de longe a longe e durante a noite atravessavam a fronteira e vinham pernoitar com as famílias.
As peças necessárias para a sua reparação demoraram a chegar de Luanda e a falta de água veio piorar as já de si precárias condições de vida.
Como se tal não bastasse, o Quartel-general não procedeu à transferência dos nossos vencimentos para Nóqui e em breve nos vimos sem um tostão na algibeira.
A sopa que era a mais valia de uma alimentação já de si sofrível, passou a ser feita com água do rio Zaire e deixou de ser apetecível, mas era o único líquido que ingeríamos, pois não dispúnhamos de dinheiro para frequentar o bar. Passei então a saber o significado da palavra sede.

*


*
Foram muitas as noites em que tive grandes dificuldades em adormecer, até que um dia obtivemos do Alferes que comandava o acampamento permissão para que descêssemos os três a íngreme encosta até ao ribeiro que corria por entre a floresta.
Debaixo de um calor tórrido espingarda a tiracolo e cartucheiras à cintura iniciámos a descida.
Quando estávamos perto do fim deparamos com um pequeno grupo de soldados que regressava já de banho tomado. Perguntei-lhes: - ainda estamos longe? – Não, é já aí em baixo!
Corri o mais que pude, entrei na pequena floresta e quase juro que senti o “cheiro” a água fresca…
Mais alguns passos e… finalmente água.
Bebi sofregamente toda a água que o meu estômago aceitou, e no fim senti que alguma coisa não estava bem: - a água sabe a sabão! Comentei com o Faria e o Minga que acabavam de chegar. Porra, a água sabe a sabão! E ainda me recordo do ar de gozo do Serafim Minga quando me disse:
- Deve saber a sabão e a outras coisas. Ó pá, não viste os gajos a passar por nós? Então bebeste água com sabão, champô e na certa mijo também, pois quando se toma banho sempre se faz uma mijinha…! Temos de descobrir o sítio onde tomaram banho e subir, para bebermos água limpa.
Sentia-me muito mal com aquele gosto esquisito, e passei bastante tempo a fazer passar água limpa na boca e assim acalmar a papilas gustativas.

*


*
Foi já muito próximo do Natal que o motor voltou a funcionar e o problema da sede ficou resolvido.
Saímos de Nóqui a 13 de Janeiro de 1966, mas recordo-me bem de como foi diferente para pior o Natal de 65 assim como a entrada em 66. Nessa noite sentia-me muito abatido, e decidi deitar-me cedo mas quando a meia-noite chegou, o barulho no exterior do buraco era enorme, o pessoal estava bastante etilizado, tinham convidado o Faria e o Minga para participar na farra, e quando perceberam que eu estava deitado, tentaram (sem o conseguir) levar-me à força para o exterior. Nessa noite não estava para festas e tinha decidido assumir o papel de “homem toupeira”.

*
Dentro de dias o atribulado regresso a Luanda

7 comentários:

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Gaspar, que situacao. Ficar sem tomar banho até que dá, mas nao ter água para beber, para mim isso seria o pior que poderia me acontecer. Popis, bebo muita água.

Com certeza essa situacao te ensinou muito na vida.

Boa noite pra vocês.

Marco Reis disse...

Aqui se demonstra o verdadeiro trabalho de um fotojornalista!
Além da descrição pormenorizada, as fotos são aquilo que ninguém lhes tira: a paragem do tempo naquele momento e a eternização do mesmo.
Cumps
Marco Reis

Vitor Soeiro disse...

Fantástico!!! Contos de Guerra em pormenores inesquecíveis! Estou a adorar imenso em ler a sua fluente narrativa. Fico à espera do "Memórias 3"

Nota: Obrigado pelo elogio ao trabalho da D40.

Anónimo disse...

Muito interessante essa sua série!
Outra coisa que estou gostando de ver é fotos suas no BALEIAFRANCA!

Parabéns!

Anónimo disse...

Gaspar de Jesus descreve e fotografa uma vila, Noqui, que em 1973, era substancialmente diferente.Aliás a própria descrição, resulta para quem por ali estava em meados de 73, alguma confusão.Os Morros era onde estavam os Canhões, os Morteiros e o Radar? A Piscina, ok! Mas as Transmissões eram cá em baixo? O rio que abastecia a vila e o Quartel em 73, estou a localizá-lo.
As fotos com abrigos, onde se localizavam? Cá em baixo, ou no Morro!?Prossegue com as "estórias".

Anónimo disse...

Caro Gaspar
Estive em Nóqui de 1971 a 1973 e comandei o pelotão de canhões sito no morro que descreve. Quando cheguei, os morros tinham sofrido obras e as instalações eram bastante aceitáveis mas ainda havia restos dos atigos buracos. Quando fala de artilharia não se estará a referir a canhões sem recuo?

Anónimo disse...

Como é bom ter histórias a contar... Mesmo não sendo muito agradáveis. E melhor ainda, é ter PARA quem contá-las.
Beijoca.
Nilda.

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO
COM A ARTE NO OLHAR