segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

MEMÓRIA - 3

Entrelinhas duma Memória

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13 de Janeiro de 66. Descemos pela última vez a montanha de Nóqui (Morro de Santo Antão). Para trás ficava uma experiência que não desejava repetir, mas uma surpresa nos aguardava a essa hora, o sargento Gonçalves já voava à boleia numa avioneta que fora abastecer Nóqui de peixe fresco. Regressara assim directamente a Luanda, sem avisar, deixando-nos para trás. De novo a bordo da barcaça, que agora, a favor da corrente, demoraria apenas sete horas a chegar a Sazaire. Connosco viajavam dois soldados da antiaérea. Habitavam um buraco próximo do nosso e um deles trazia a "mascote do acampamento", o macaco Zacarias, animal muito estimado por todos nós. Perguntei-lhes se iam ao médico, responderam-me que iam passar um mês de férias em Luanda. Achei estranho. Como podiam dar-se a tal luxo? "Têm lá família?", perguntei. O que ouvi a seguir deixou-me sem palavras. "Vamos pela segunda vez para casa de uns tipos que conhecemos por correspondência. Ambos têm mulher e filhos, mas são dos que gostam de usar cuequinhas de senhora... Vamos viver à grande e quando voltarmos trazemos os bolsos cheios de dinheiro". A partir daí preferi a companhia do Zacarias. Faria e Minga também. O mundo daqueles dois não era o nosso. Acostámos em Santo António do Zaire a meio da tarde. O Zacarias estava comigo, mas, na azáfama do desembarque, larguei-o momentaneamente. Ao fundo da ponte que nos levaria a terra firme estavam duas senhoras e foram os seus gritos apavorados que despertaram a nossa atenção. Extremamente excitado, o Zacarias pulava e guinchava por entre as saias das assustadas mulheres, mostrando as suas intenções.
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Em Santo António do Zaire
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A unidade militar era a mesma que nos havia acolhido dois meses antes. Aí aguardaríamos até que algum navio de guerra da Marinha Portuguesa por lá aportasse. Nada tínhamos comido durante a viagem. Estavámos esfomeados, sem dinheiro. E assim permanecemos até à hora do jantar. Indicaram-nos a caserna e as camas. Eram de rede e nem sequer tinham colchão. Teríamos de continuar a dormir vestidos.Aproveitei para escrever alguns bate-estradas (aerogramas) para a mãe e namorada, enquanto o Faria e o Minga foram à Marinha saber quando teríamos barco. Acabada a escrita, saí da caserna para depositar os sobrescritos no receptáculo à porta da secretaria, ia com a camisa por fora das calças, em chinelos e de cabeça descoberta...Viram-me! Fui chamado à presença do primeiro da companhia, o mau atavio era por de mais evidente. Argumentei como pude, que estava só à espera de barco para Luanda, que tinha estado na fronteira, etc., etc., mas de nada valeu. Entretanto chegaram o Faria e o Minga, as notícias não eram boas: não havia barco com data prevista. Na certa teríamos de esperar de uma a duas semanas. Animou-nos o facto de ter chegado a hora do jantar e sentirmos o conforto de uma refeição quente.A noite chegou e com ela vieram os mosquitos que, em vagas maciças, não nos davam descanso. Fui até à cantina, lá distribuíam repelente em pomada para colocar na pele e pequenas bombas de insecticida que atirámos contra as paredes da caserna. Morreu a maioria dos insectos, mas os que resistiram chegaram e sobraram para nos infernizar o resto da noite. No dia a seguir lá estava o 1º cabo 178/63M na escala de serviço. Tinha sido "contemplado" com três reforços. Cumpri o primeiro castigo nessa noite à porta de armas, mas estava revoltado e decidido a fazer tudo para não cumprir os que faltavam. Na manhã do dia seguinte pedi aos meus dois companheiros que fossem à Marinha perguntar se, por acaso, não haveria um outro barco qualquer que fosse para Luanda nos dias mais próximos. Assim fizeram e a resposta foi animadora: "Disseram-nos que há um pequeno barco-frigorífico que parte hoje para Luanda, mas temos de lá voltar e falar com o comandante, é um tenente, para ver se o convencemos". Assim fizemos e o santo do homem concordou em nos levar assinando o termo de responsabilidade. Levantámos as guias de marcha, ninguém se opôs, e pelas duas horas da tarde embarcámos no mais pequeno barco da Marinha que já me foi dado ver. Soubemos que tinha vindo abastecer de carne os marinheiros aí estacionados e regressava agora de frigorifico vazio.A tripulação era comandada pelo simpático tenente - que à partida nos perguntou, meio a sério meio a brincar: "Vocês sabem nadar?"... - e composta ainda por outros dois marinheiros, mais um simpático negro, que me pareceu ser o responsável pelo porão. Ou seja, pelo frigorifico.Uma simples corda servia de amurada e transmitia uma forte sensação de insegurança, mas a tarde estava agradável, nada fazendo prever a forte tempestade que se abateu sobre nós durante a noite. As ondas eram enormes e varriam a embarcação de lés a lés. Não tínhamos onde nos abrigar. Na cabina apenas cabiam os três marinheiros. Foi-nos aconselhado que ocupássemos a ré e nos agarrássemos ao varão metálico que circundava a cabine. Assim fizemos e assim passámos aquela que considero ter sido a pior noite da minha vida. Encharcados até aos ossos, mantínhamos conversa constante uns com os outros, não fosse o sono vencer-nos e largarmos o ferro que nos prendia à vida. Com as ondas vinham também os peixes-voadores, caíam-nos aos pés, e iam sendo por nós devolvidos ao mar. Por mais de uma vez o tenente, visivelmente preocupado, porventura arrependido, saiu da cabina e veio até à ré verificar se estavámos todos. Sentíamo-nos doentes, o estômago protestava e os vómitos eram constantes. A certa altura o tenente deixou de aparecer. "Está doente!", disseram-nos os marinheiros, que, tal como nós, não paravam de vomitar. O Serafim Minga ainda conseguia gracejar, apelidando-nos de maricas, e tinha as suas razões, pois o estômago dele tinha-se aguentado heroicamente. Já a manhã raiava quando um dos marinheiros solicitou que o acompanhasse à cabina e me pediu que tomasse o leme. "É muito fácil", disse ele, ao ver a minha cara de espanto. Pensei que fosse brincadeira, mas, quando o olhei no rosto, pude imaginar o estado em que encontraria o seu estômago. Ainda incrédulo, regressei para junto dos meus companheiros. Soubemos mais tarde que tinha sido o simpático negro a conduzir-nos até Luanda.
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Luanda
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Felizmente a tempestade serenou e foi com mar chão que, pelas nove horas da manhã, chegámos à capital.Todos estávamos conscientes dos riscos que tínhamos corrido, mas tal não nos impediu de sorrir ao ver o Serafim Minga vomitar logo que pôs o pé em terra.





6 comentários:

Anónimo disse...

Nossa!
Quanta história...
Beijoca.
Nilda.

:.tossan® disse...

Bela continuação da narrativa, que além da boa leitura, a ilustração bem feita. Abraço

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Gaspar, essa sua história está uma verdadeira aventura. Mosquitos, estômago vazio, esfomeados, esperando para ir embora, minha nossa!!! O que mais vai te acontecer?

Gostei das fotos. Você bem jovem nao iria te reconhecer.

Boa noite prá vocês

Milouska disse...

Uma história pessoal cheia de memórias...
Obrigada por partilhá-la connosco.
Um bjo,

Milouska

Vitor Soeiro disse...

Aprecia, sobejamente, tão magníficos pormenores que criam a beleza da história! Memória muito viva dos acontecimentos. Parabéns!...

Marco Reis disse...

Excelente imagem de Luanda!!!
A arquitectura natural em conjunto com a arquitectura do Homem estão em perfeita sintonia.
Abraço
Marco

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO
COM A ARTE NO OLHAR