Conto de Natal*
O menino que se chamava Jesus, o presépio do Jesus menino, os Três Velhotes, e a garrafeira do senhor Padre.
*
*
Jesus era um menino de corpo franzino, o mais velho de quatro irmãos numa família pobre, desmembrada, e muito carenciada. Ao menino, que se chamava Jesus, incumbiam tarefas tão simples quanto importantes: tomar conta dos irmãos mais novos, dar-lhe as refeições previamente preparadas por sua mãe e sua tia antes de irem trabalhar, lavar a louça e fazer os habituais recadinhos, para que quando a noite chegasse e a família se voltasse a reunir tudo estivesse normal.
Aquele Natal era apenas mais um na curta vida do menino que se chamava Jesus. Fazia frio e o menino tiritava, pés descalços pela calçada, na já costumeira caminhada até à mercearia do senhor Domingos; o rol das compras era pequenino, como pequenino era o conjunto de moedas que levada aconchegado no bolso das calças: um quilo de broa (pão de milho), meio quilo de arroz, meio quilo de massa da mais barata (por alcunha, manga de capote), um quarto de quilo de açúcar amarelo, um quarteirão (1/8 de litro) de azeite, etc.
Com um sorriso na cara, o senhor Domingos subiu a um pequeno banco e retirou da prateleira mais alta uma das garrafinhas de vinho fino. Embrulhada em papel de seda e coberta por uma subtil camada de poeira, deixava transparecer os Três Velhotes da Cálem.
- Toma lá, é para o vosso Natal!
*
*
O menino que era Jesus não cabia em si de felicidade e com a vozita embargada pela emoção proferiu um muito obrigado. Dali até casa os seus pezitos nus voaram pela calçada… nesse dia já não jogou ao pião para não perder de vista o lindo presente.
- O vinho fino é para o menino Jesus! Vai para o presépio que está na igreja., disse a tia beata com um ar autoritário, enquanto o menino que era Jesus irrompia num choro compulsivo: - …para o presépio…? É mas é para o padre! O menino Jesus não bebe, é de louça…!
Não havia nada a fazer. A garrafa foi bem escondida e no domingo seguinte lá estava ela entre muitas outras prendas no presépio da igreja paroquial, onde se podia ler “Ofertas para o menino Jesus”.
*
*
O menino que se chamava Jesus olhava com olhos tristes o vinho fino aos pés do Jesus menino que era de louça, e chorava de raiva por não ter a coragem de estender a mão e resgatar a garrafinha que o senhor Domingos lhe tinha oferecido… como ele gostaria de beber daquele vinho que outros meninos lhe diziam ser doce.
Anos mais tarde, o adolescente que se chamava Jesus, agora militante da J.O.C. (Juventude Operária Católica) foi testemunha do quanto o senhor padre se orgulhava de possuir uma excelente garrafeira: - Um dia hás-de ir ver a minha colecção de garrafas, rapaz.
Nesse momento imaginei os Três Velhotes, deitados, cobertos de pó, na garrafeira do senhor Padre.