terça-feira, 7 de julho de 2009

OS DIAS DE CUIMBA

MEMÓRIA
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ENTRELINHAS DE UMA MEMÓRIA
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OS DIAS DE CUIMBA (2)
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Construído pelo primeiro batalhão aí estacionado, deveu-se à iniciativa de um futebolista muito conhecido em Portugal, o alferes miliciano Ramin, guarda-redes da Académica de Coimbra.
Não custa acreditar que a Serra da Canda tenha sido privilegiado observatório que permitiu aos guerrilheiros do MPLA vigiarem toda a fase da sua construção e congeminassem algo de muito grave para as nossas tropas.
Assim, começou por ser de festa o dia da inauguração do campo. Prevista estava a disputa de um minitorneio de futebol, o que atraiu a Cuimba militares das outras companhias.
Reza a história que nestas ocasiões é “normal” cometerem-se exageros e descurar a vigilância. Prevendo isso, os “terroristas” (nome por que tratávamos os guerrilheiros dos movimentos de libertação) desceram a serra e, a coberto do capim, entrincheiraram-se nas imediações do campo.
Ao que consta, os nossos militares convergiram em massa para o recinto de jogo. Poucos ou nenhuns terão levado as armas.
Ao invés, os “turras” aproveitaram para descarregar as suas.
Facilmente se imagina os momentos de terror vividos pelos soldados portugueses, que, desprevenidos, encetaram louca correria em busca das espingardas. Mas era tarde...
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O inimigo actuou no sistema “toca e foge”, não se dando a conhecer.
Assim, o dia que se pretendia festivo acabou em tragédia. No terreno ficaram oito mortos e um grande número de feridos. Entre estes estava o próprio Ramin, com uma perna desfeita.
A história de Cuimba registara um outro ataque (Dezembro de 63) cujos contornos desconheço e de que resultaram cinco mortos entre os portugueses.
Esta região era também fustigada por fortes temporais. Durante o tempo que por lá vivi, muitos foram os dias em que ao calor tropical se juntava chuva, vento forte e até trovoada. Uma noite aconteceu que o temporal destruiu as nossas antenas, tornando-se necessária a sua substituição. Contámos para isso com a preciosa ajuda do 670, para nos escoltar até à mata em busca de canas de bambu.
Nesse local vivia uma colónia de pequenos macacos e lembro-me do trauma que senti ao ver os nossos matarem os animais por puro divertimento.
A montagem das antenas foi muito complicada, imprópria para quem, como eu, não estava habituado à dureza desses trabalhos. Valeram-nos o Faria e o João, que, super-habituados a cavar a terra, rapidamente abriram os buracos necessários à instalação das mesmas enquanto se riam dos meninos da cidade.
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Foto: José Bregieiro - Assinalada com X a casa que habitei
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Acabado o trabalho e restabelecidas as condições de escuta, retomámos o serviço. As frequências que escutávamos eram maioritariamente do Exército congolês. Interceptávamos também mensagens emitidas pelos correios de Brazaville, Boma, Matádi e outros. Apesar da nossa baixa escolaridade (as mensagens eram em francês), rapidamente aprendemos a diferençar as missivas importantes das mais rotineiras, sendo as primeiras enviadas com urgência para análise nos serviços centrais em Luanda.
O nosso dia-a-dia contrastava, e muito, com o dia-a-dia dos operacionais do Batalhão, dado que a estes competiam a segurança do aquartelamento, das colunas motorizadas, e, pior ainda, as operações de Investigação, Observação e Reconhecimento (I.O.R.). Estas operações tinham lugar uma a duas vezes por semana e revestiam-se do maior secretismo.
Inopinadamente acordados ao raiar do dia, os homens não tinham a menor noção da “tarefa” que lhes ia ser atribuída. Pequeno-almoço tomado à parte, os seus rostos acabrunhados denunciavam angústia e receio; já no regresso da refeição vinham diferentes. Como por encanto, os homens passavam de receosos a eufóricos, mostrando-se agora animados e ansiosos por entrarem em acção.
Não tínhamos dúvidas de que eram “estimulados” para as missões a executar. (Hoje todos sabemos que o Exército português copiara os métodos usados pelo Exército americano no Vietname).
Regressavam um ou dois dias depois, desidratados, rostos da cor da terra, com o olhar vago e as cartucheiras vazias.

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Continua





2 comentários:

Jorge Alves disse...

Meu amigo
Felicito-te por estas memórias. Ainda bem que as consegues transformar em texto. Grande abraço

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Gaspar que triste esta parte da história, nao?


Estou continuando a ler...

5ª TERTÚLIA A 02 DE JULHO

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COM A ARTE NO OLHAR