

Fúrias e abalos da sorte
O rio meandreia, dá-se a meneios de mesura na borda da cidade, como aqueles animais que tem dias que são prazenteiros e se prestam à companhia e reclamam afagos. Parece querer sempre pacífico desaguar na foz onde o mar o recebe, bendiz e absorve. Mas em explosivos invernos que torcem árvores, destelham casas deslocam terras e derrubam muros e pontes, eis que o rio ruge e corre, com a fúria duma força que desembesta e tudo leva de fiada e as águas afirmam-se, afastam ondas, arredam mares bravios, e vão desaguar a S. João da Luz, Biscaia e nessas pedras e plagas depositam os corpos sacrificados.
Pacato rio do comércio, tanta vez toado de sangue e arrepiado de desastres e naufrágios, cruzado de gritos, rugidos e súplicas, coalhado de destroços e de morte. Não me desminta do lado sul ao alto do monte da Virgem, com a sua aparente paz, protectora e durável. Que bem o recordo negro de lumes, defendido por taludes e madeiros escuros, crivado de espingardas e baionetas, ponteado das bocas dos canhões, algodoado de fumos de pólvora que o brasido da metralha vinha resolver, estremecidos ao som dos disparos. Quando estará tão distante e remota a memória destes transes para podermos, enfim, confiar na inocência das coisas?
Mário de Carvalho in 21 RETRATOS DO PORTO PARA O SÉCULO XXI
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CANÇÃO DA PRIMAVERA
Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores,
pois que Maio chegou,
Revesti-o de clâmides de cores!
Que eu, dar flor, já não dou.
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Eu, cantar já não canto. Mas vós, aves,
Acordai desse azul, calado há tanto,
As infinitas naves!
Que eu, cantar, já não canto.
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Eu, invernos e Outonos recalcados
Regelaram meu ser neste arrepio...
Aquece tu, ó sol, jardins e prados!
Que eu, é de mim o frio.
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Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio,
Vem, com tua paixão,
Prostrar a terra em cálido desmaio!
Que eu, ter Maio, já não.
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Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto;
Ter sol, não tenho; e amar...
Mas, se não amo, Como é que, Maio em flor, te chamo tanto,
E não por mim assim te chamo?
José Régio
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